Chico, o sambista de olhos verdes
Com sua presença, Chico Buarque faz ver o cruzamento de muitas forças constitutivas do país que lhe deu à luz. A contaminação profunda entre elas, as combinações felizes ou traumáticas e, sobretudo, a invenção de formas renovadoras e irredutíveis a simplificações. Os enredos complexos dos romances de Chico Buarque estão, antes de mais, nele mesmo como imagem do Brasil, como expressão das complexidades culturais de seu povo.

É maravilhoso – poderia dizer que é revelador e educativo – que um dos maiores nomes de nossa música popular não seja um negro – strictu senso –, como também não o é João Gilberto. Como não eram negros Noel Rosa e tantos outros, que trazem nos seus modos de compor e de cantar, no jeito de estar em cena e de se colocar no terreno da música, um conjunto de saberes que remete às cadências, aos ritmos, aos sentimentos, à índole do que podemos chamar de africanidade brasileira.

Chico Buarque, sambista de olhos verdes ultramarinos, dá a ver uma miscigenação que não se limita à questão racial, porquanto avança em direção às mais altas esferas da cultura. Distante dos limites visíveis da raça e da linearidade de certas explicações históricas e/ou sociológicas, distante de tantas ideologias, ele nos ensina pela sua presença radiante que a raça é um conceito a superar. Um grande sambista, repito, de olhos verdes, e também um alto escritor, no centro do Brasil moderno, dá a medida da nossa capacidade de inventar saídas sócio-culturais, faz ver a reconstrução da história em moldes libertadores, leves.

Vemos Chico Buarque e imediatamente nos afastamos da idéia de identidade como objeto homogêneo, ininterrupto, e substituímos de imediato a obsessão pela raiz – cuja função é fixar à terra – pela fluidez aquática dos seus olhos, onde ecoa uma Europa distante mas persistente. Lembro-me de Hermeto Pascoal, um músico tão brasileiro quanto universal, tão nordestino quanto norte-americano, e do livro de contos do angolano Eduardo Agualusa, Manual prático de levitação, que se abre com um personagem albino. Decerto, não será por acaso que albino era também Félix Ventura, o personagem que vendia passados falsos num de seus romances, O vendedor de passados. Penso que a ausência do pigmento da pele, mais que uma anomalia congênita, nos dois casos, é, simbolicamente, um índice de apagamento da cor compreendida como índice identitário: a falta da cor livra-nos da contingência da raça.

É excepcional que um romance complexo e pouco comercial como Budapeste tenha estado por meses na lista dos livros mais vendidos. Chico Buarque transforma um país de analfabetos em país de leitores. E tudo isto se dá sem cortes profundos. Aceitamos a beleza que Chico Buarque nos oferece sem qualquer movimento oblíquo de desconfiança, descrédito, sem susto e sem o sentimento de desajuste. O público de música, de literatura e de teatro responde às obras do mesmo modo como elas se dão: sem rupturas, inteiras, sinceras. Sem as rupturas caracterizadoras das vanguardas, sem a utopia estético-revolucionária calcada em modelos de avanço militar, as canções, os romances e as peças de teatro realizam um movimento de deslizamento sutil para dentro da cultura, transformando-a sem cortes ou saltos, e sem que com isso percam potência ou brilho. Pelo contrário, Chico Buarque parece trabalhar em sintonia com o desejo brasileiro de obter o melhor sem que para isso se experimentem choques e radicalismos. Ao absorver as mudanças essenciais da bossa nova, a linguagem do samba urbano, a sofisticação vocabular da língua e os deslocamentos metafóricos da poesia, Chico abraçou a tradição e levou adiante as mudanças que se operavam na música popular. O mesmo ocorreu com sua escrita, onde as muitas vertentes do teatro e do romance modernos se harmonizam com o gosto pelo universo popular e pela tipologia humana que enche as ruas Brasil.

Sua capacidade de fazer bem feito, sua mestria como músico e letrista, a beleza de tudo o que faz, a sua própria beleza desamparada, ajudaram-no desde cedo a ser admirado pelo público e pela crítica. Num certo momento da história brasileira, quando endureceu o autoritarismo da ditadura militar – 1968 é o ano decisivo –, ele passou a ser um dos alvos preferidos da censura. Todos conhecem bem a história e Chico já se referiu a tais problemas um sem-número de vezes. Mas como é que o meigo rapaz de olhos tristes e voz pequena se converteu num perigoso inimigo do sistema? Penso que nunca houve um e outro. Os dois são uma mesma coisa. Na figura doce e sedutora de Chico Buarque, amado pelo público e respeitado pela crítica, está o criador insatisfeito, transformador, ocupado em apontar nas suas letras e nos seus romances para o que há de sórdido e mau no Brasil que o aplaude e que ele ama tão profundamente. Fala-se muito, por exemplo, no compositor que canta como ninguém a alma feminina. Note-se, porém, que exatamente por isso ele é igualmente o cantor da alma masculina numa cultura de raízes patriarcais, coercitiva, despótica. A violência urbana, a crueldade das relações sociais, a loucura, o tédio burguês, a submissão feminina, o absurdo das relações amorosas, o desespero, a dor, nada escapa do crivo de Chico Buarque. E vamos todos aprendendo com ele. Quase sem perceber.