Os passos em volta
Orelha de Os passos em volta, de Herberto Helder (Rio de Janeiro: Azougue, 2004).

Os passos em volta apresenta a prosa de um dos grandes poetas portugueses. A primeira tentação é dizer que a leitura deste livro enlouquece. A segunda, dizer o contrário: que o seu leitor se investe de uma lucidez inquietante. Tal flutuação atrai e desconcerta. O primeiro texto, “Estilo”, empresta algumas chaves para o volume. A certa altura, lê-se: “Arranjei o meu estilo estudando matemática e ouvindo música. – João Sebastião Bach.” Avisa-se, portanto, que a escrita aqui é uma forma de evitar a loucura, que a linguagem se faz como uma espécie de ciência investigativa, próxima de uma exatidão objetiva voltada para relações entre entidades definidas abstrata e logicamente. O “estilo” seria resultado de uma operação racional, apaziguadora. Diz ainda o narrador: “O poeta não morre da morte da poesia. É o estilo.” A criação desnuda-se, está claro, como fingimento, criação, não se confundindo com a vida e seu descontrole. Daí, a afirmação: “Vê-se bem que não estou louco. Eu, não. As crianças é que enlouquecem, e isso porque lhes falta um estilo.”

Mas se a escrita se anuncia à saída como lucidez e equilíbrio, o leitor logo percebe que, contrariamente a isto, os textos empurram-no para um universo de loucura e instabilidade. Supõe, então, que o anúncio do estilo como (auto)controle, moderação e sanidade não passara de um blefe, carregado de impiedosa ironia. Os passos em volta põe em cena exatamente a devastadora luta entre estilo e loucura, numa escrita que se dá em ritmo célere, tumultuoso, brutal, nascido por força de uma excitação ininterrupta. Eis o “estilo” Herberto Helder, desenvolvido a partir do acionamento de uma poderosa máquina metafórica, capaz de inventar sentidos e distendê-los excessiva e violentamente, o que provoca deslocamentos e repuxos. Não há repouso. Mas se o fluxo verbal semelha o descontrole, deixa ver igualmente uma trama urdida com excepcional rigor construtivo, donde a qualidade desta prosa estar muito próxima do poema.

O maquinismo herbertiano faz com que as coisas deslizem desamparadas para dentro da linguagem e sejam então iluminadas por uma luz cruel, que não poupa os pactos de normatização social – as leis, os códigos comportamentais, a moral, a língua, a literatura, a boa educação do inconsciente. Tudo é tragado – e nós, leitores – para dentro desta escrita cujo frescor e brilho, simultaneamente, assustam e fascinam.