Cosmologia
Orelha de Cosmologia, de Marcelo Diniz (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004).


Desde o título, este livro não esconde sua vontade de conhecimento. Mas se seu nome sugere que a poesia aqui partilha algo com uma filosofia voltada para o estudo do mundo material, é certo que não há pensamento, teoria ou sistema a guiar previamente os poemas. Sem se deixar seduzir pelo ilusório horizonte de uma poética que buscasse para si um argumento fora dela mesma, a escrita de Marcelo Diniz realiza-se numa operação, a um só tempo, sensível e construtiva, fazendo surgir, no seu processo, um livre conhecimento das coisas e dos seres. Assim, há mais peso na composição imagística que nos aspectos temáticos, embora haja um certo universo material arregimentado pelo poema, que funciona então como uma lente, sob a qual se desenham a bromélia, a mosca, o peixe, o formigueiro, uma série de mínimas realidades que atuam como “estopim do espanto”; o silêncio é empurrado então para a linguagem – uma linguagem-lente que se volta também para o alto, para cometas e galáxias. Este movimento oscilante entre coisas irrelevantes e a imensidão engendra uma “escada improvável” (outro título possível para este livro). Para tanto, que instrumento? Na construção rigorosa, precisa e espantosamente bela das imagens, a sintaxe surge como ativa, veloz, entusiasmada e diligente ferramenta de perfuração do real – ela é o dispositivo capaz de dar a ver as coisas longe de suas prateleiras convencionais, desmontadas sob os golpes violentos de um saber novo e absoluto, fundado em cada frase, sem história, sem passado, sem conceitos-guias, constituindo uma escrita que, dir-se-ia à primeira vista, desliza, suave, sem entraves. Mas é no trilho da frase esguia, plasticamente polida, que vemos desabar as “grandes máquinas” (o pensamento? os afetos? os discursos? a cidade? as identidades?) sobre nossas cabeças. O que surpreende e fascina nestes poemas é sobretudo a força dos deslocamentos, a beleza do que inventa em seus golpes, a capacidade de o verso – esta lente tão antiga – poder dizer ainda sobre o espanto e o pasmo, sem cristalizá-los numa ordem que não a da linguagem, verso liberto de quaisquer pressões e parâmetros da língua utilitária, mas igualmente desembaraçado das imposições de uma iconoclastia com incoerentes foros de teoria e ordem. A linguagem que se pratica aqui pertence a uma hipotética e imponderável escola do espanto. Apontar para o pendor intelectual da escrita de Marcelo Diniz seria, digamos, a forma mais fácil de ajuizar o seu rigor construtivo extremo e a sua força ordenadora, patentes na estruturação dos livros em suas partes, na posição de cada poema, na relação entre título e texto, na ordenação sintática, na sílaba, no fonema, no vazio entre cada um destes elementos. Tudo, de fato, surge-nos como que avaliado por uma aparelhagem potente, uma lente poderosa, um maquinismo seletivo-organizativo extraordinário. Mas não se engane o leitor: este é um livro em alvoroço. E todo o seu arranjo, enfim, mostra-se carregado de um saber fundado ali mesmo, na escrita (na leitura), resultante da inteligência e da técnica tanto quanto do susto e do pasmo. O que se dá neste modo de conhecimento, porém, desconcerta os saberes constituídos e transita no “pavimento mais/indeterminado da história”, onde não entram a filosofia, a ciência, a psicanálise, a moral, a fala. Em (sua) Cosmologia, os poemas afirmam todo o tempo que a realidade mais banal e a irrealidade absoluta são uma só coisa, e, ironicamente, o mundo material e a hipotética filosofia natural que sobre ele se voltasse deformam-se sob a força de uma contra-natura, de uma outra natureza, organizada sob outras leis: a linguagem é seu único lugar (lugar nenhum); seu tempo é à beira, tempo fora do tempo, tempo de uma “eternidade súbita”. Onde e quando o real é o “imponderável pão de cada dia”.